sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Do sublime

Não é a persuasão, mas a arrebatamento, que os lances geniais conduzem os ouvintes; invariavelmente, o admirável, com seu impacto, supera sempre o que visa a persuadir e agradar; o persuasivo, ordinariamente, depende de nós, ao passo que aqueles lances carreiam um poder, uma força irresistível e subjugam inteiramente o ouvinte. A habilidade da invenção, a ordenação da matéria e sua distribuição, nós a custo as vemos emergir, não de um, nem de dois passos, mas do total da textura do discurso, enquanto o sublime, surgido no momento certo, tudo dispersa como um raio e manifesta, inteira, de um jato, a força do orador.

[Do sublime, cap. I, parágrafo 4 - Longino ou Dionísio]


Aliás, tampouco ignoro que nós, naturalmente olhamos todas as ações humanas antes pelo lado pior e que a lembrança dos erros permanece indelével, enquanto a das belas ações cedo se escoa. Eu mesmo já registrei não poucas falhas de Homero e dos outros maiores escritores; os defeitos não me proporcionaram o mínimo prazer; contudo, não os considero faltas voluntárias de bom gosto, senão lapsos casuais, produto inadvertido de incúria da genialidade; ainda assim, penso, embora as maiores perfeições não mantenham o seu nível em toda parte, devem receber sempre o voto para o primeiro prêmio, se por nenhum outro motivo, pela sua própria elevação.

[Do sublime, cap. XXXIII, parágrafo 3 - Longino ou Dionísio]


É fácil, caríssimo amigo, e próprio do homem sempre dizer mal do seu tempo. Vê lá, no entanto, talvez não seja a paz do mundo habitado o que corrompe as grandes naturezas, senão muito mais essa guerra sem fim que domina os nossos desejos e, por Zeus! além dela, as paixões que assediam a vida atual e a devastam de alto a baixo. O amor das riquezas, com efeito, mal insaciável de que todos hoje padecemos, e o amor dos gozos nos escravizam ou melhor, pode-se dizer, arrastam de corpo e alma a um abismo; o amor do dinheiro é uma doença que empequenece; o dos prazeres, a mais ignóbil de todas. Por mais que reflita, não consigo descobrir como, adorando, ou, para dizer a pura verdade, endeusando uma riqueza ilimitada, seria possível não contrairmos os seus males congênitos, que nos assaltam a alma. Com efeito, unida à riqueza desmedida e desregrada, dizem, uma suntuosidade a acompanha, marcha com ela a passos iguais e, pelas portas que ela vai abrindo, com ela invade as cidades e casas e com ela passa a morar. Conforme os sábios, ambas, com o tempo, nidificam na nossa vida e dispostas à procriação, geram a cobiça, o orgulho, a luxúria; não é uma prole sua espúria, mas sim absolutamente legítima. Se a gente deixa esses rebentos da riqueza atingir a idade adulta, logo dão à luz nas almas a uns tiranos inexoráveis, a insolência, o desregramento, a imprudência. É fatal que assim aconteça, que os homens não mais volvam os olhos para o alto, já não façam conta alguma da sua reputaçãoo, mas nessa evolução se complete aos poucos a ruína de sua vida, se esvaeçam e se estiolem os valores espirituais, sem mais despertar emulações, quando se volte a admiração para as partes mortais e se negligencie o crescimento das imortais. Numa causa justa e bela, já não será juiz livre e são alguém peitado para dar sentença, pois, é inevitável, ao venal só se afigura belo e justo o seu interesse pessoal; quando passam a árbitros da vida inteira de cada um de nós os subornos, a caça à morte de outros homens, as emboscadas aos testamentos; quando cada um de nós, escravo da cupidez, vende a alma para comprar todos os proveitos, acaso, nessa imensa e ruinosa podridão da vida, nos parece restar ainda, livre e incorruptível, um juiz do que é grande e durável pela eternidade, a quem não possa suplantar o desejo de possuir mais? Bem, a indivíduos tais como somos nós, obedecer a um senhor talvez seja melhor do que ser livres, porquanto nossos apetites, inteiramente às soltas, como feras libertadas duma jaula contra as pessoas próximas, alargariam com os seus males o mundo habitado. Em síntese, dizia eu, o que arruína a índole da presente geração é a indiferença em que todos, com poucas exceções, passamos a vida sem nenhum esforço nem iniciativa que não tenha em mira louvores e prazeres, jamais uma utilidade digna de emulação e apreço.

[Do sublime, cap. XLIV, parágrafos 6 a 11 - Longino ou Dionísio]


[Traduções retiradas de "A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino";
tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna;
12. Ed., São Paulo:Cultrix:2005;
páginas 72, 102, 113 e 114]

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