sexta-feira, 17 de junho de 2016

Para além do perdão

O único teste válido de uma verdadeira iniciação no mundo da cosmo-consciência é o fato de alguém ser totalmente imunizado contra qualquer sentimento de ofendismo crônico e de ofendite aguda. Enquanto o homem se move ainda no plano horizontal do ego, mesmo do ego virtuoso, é ele alérgico e vulnerável em face de ofensas e injustiças, e só pode assumir uma das duas alternativas do homem profano: ou vingar-se - ou perdoar ao ofensor. O ego é como a água, sempre nivelada horizontalmente; toda a água, quando deitada num recipiente impuro, se torna impura. Nenhum ego pode conservar-se puro, indene de contaminação, em face de ofensas. Embora o ego virtuoso seja melhor que o ego vicioso, é uma ilusão que o ego virtuoso seja puro e incontaminável; o simples fato de o homem virtuoso perdoar ao ofensor é prova de que ele se sentiu ofendido; se não se sentisse ofendido, não teria nada que perdoar. E sentir-se ofendido é ser contaminado pelo ambiente do ego ofensor. Toda perdoação prova contaminação.

Quando, porém, o homem transcende a horizontalidade aquática do ego humano e entra na verticalidade da luz do Eu divino, então - adeus contaminalidade! Adeus alergia das circunstâncias ofensivas! Esse homem está para além de vingança e perdoação. Não existe luz impura. Pode a luz entrar nas maiores impurezas, ela sairá sempre pura como entrou.

E não dizia o maior dos Mestres: "Vós sois a luz do mundo"?

Quando o homem supera o ego ofendível e entra no Eu inofendível, então, e só então, atingiu ele as alturas da sua completa e definitiva libertação.

[...]

O maior feito de Gandhi não foi a libertação da Índia da tirania dos ingleses - o maior feito do Mahatma foi a libertação de si mesmo da tirania do seu próprio ego. Grande foi a sua libertação corporal pela brahmacharya - incomparavelmente maior, porém, foi a libertação do seu ego-mental-emocional pela conquista da perfeita inofendibilidade.

[Mahatma Gandhi, cap. "Nunca ninguém me ofendeu" - Huberto Rohden]

Coerência

Admito que há na minha vida numerosas incoerências. Mas como me chamam mahatma (grande alma), estou disposto a endossar as palavras de Emerson, de que a tola coerência é o cavalo de batalha dos espíritos medíocres. Acho que vai certo método através das minhas incoerências. Creio que há uma coerência que passa por todas as minhas aparentes incoerências - assim como há na natureza uma unidade que permeia todas as aparentes diversidades.

Amigos meus que me conhecem têm verificado que eu tenho tanto de um homem moderado quanto de um extremista, que eu sou tão conservador quanto revolucionário. Assim se explica, talvez, a minha boa sorte de ter amigos entre esses tipos extremos de homens. Essa mescla, creio, corre por conta da minha própria ahimsa.

A minha incoerência é meramente aparente, devido à atitude que tomo em face de circunstâncias várias. Certo tipo de coerência aparente pode ser até uma obstinação real.

Recuso-me a ser escravo de precedentes ou a praticar algo que não compreenda nem possa defender com base moral. Não sacrifiquei princípio algum a fim de conseguir alguma vantagem política.

Tive a sorte, ou falta de sorte, de colher o mundo de surpresa. Novos experimentos, ou experimentos velhos em forma nova, geram, por vezes, incompreensão.

[...] 

Nunca fiz da coerência um fetiche. Sou adepto da Verdade, e tenho de dizer o que sinto e penso, em dado momento, sobre isto ou aquilo, independente do que tenha dito anteriormente sobre o assunto... Na medida que a minha visão se vai tornando mais clara, meus pontos de vista se esclarecem com a prática diária. Quando modifico deliberadamente a minha opinião, as consequências são inevitáveis. Mas somente um olhar apurado é capaz de verificar nisto uma evolução gradual e imperceptível.

Não estou absolutamente interessado em parecer coerente. No meu caminho em busca da Verdade, tenho abandonado muitas ideias e tenho aprendido muitas coisas novas. Velho como sou de corpo, não tenho a consciência de ter cessado de crescer interiormente, ou que o meu crescimento vá estagnar com a dissolução da minha carne. O que me interessa é a minha atitude de prontidão em obedecer ao chamamento da Verdade, o meu Deus, de momento a momento.

Há princípios eternos que não admitem compromisso, e o homem deve estar disposto a sacrificar a sua vida para obedecer a esses princípios.

[Palavras do próprio Gandhi, citadas no livro Mahatma Gandhi,  
cap. "As 'Coerentes Incoerências' de Gandhi", de Huberto Rohden]